Dentre as alegações divulgadas no pronunciamento do Ministro da Justiça, pululam supostos atos ilegais do Presidente da República. Obviamente que não foram apresentadas provas e não foi aberto qualquer processo investigativo, muito menos o devido processo legal com ampla defesa e contraditório, pelo que não se pode imputar nenhum ato ilícito neste momento.
Confira os procedimentos dos crimes comuns e de responsabilidade do presidente da República neste arquivo.
Porém, faremos uma análise teórica do enquadramento jurídicos dos atos alegados, caso sejam provados verdadeiros. Os fatos/alegações analisados são: i) inclusão de afirmação inverídica em diário oficial; ii) tentativa de interferência em investigações policiais em curso; iii) tentativa de acesso aos relatórios de inteligência da Polícia Federal; iv) ausência de fundamento para exoneração de servidor público comissionado.
a) Crimes de Responsabilidade
Os crimes de responsabilidade têm natureza jurídica político-administrativa, em defesa da probidade e da moralidade dos atos dos agentes políticos. Seu julgamento se dá no âmbito de casas legislativas e a instauração dos processos de investigação é uma decisão política por um chefe de poder, ato político – não administrativo.
Isto significa que os tipos – atos previstos abstratamente na legislação – são abertos, isto é, sua redação genérica, indeterminada, é flexível para encampar atos imprevisíveis, sem a rigidez do processo penal ordinário.
Portanto, o juízo de gravidade do ato para configurar crime de responsabilidade passível de impeachment é político, decorrente da visão que a maioria parlamentar forma sobre os fatos e o agente sob julgamento.
O Supremo Tribunal Federal já teve oportunidade de afirmar a ampla autonomia do Poder Legislativo neste processo, e que a função do Poder Judiciário é apenas da garantia do devido processo legal.
Vejamos, porém, em tese, quais dos fatos imputados poderiam constituir crime de responsabilidade, na forma da Lei 1.079/1950.
Art. 9º, 4 e 7 – Crimes contra a probidade da administração. Expedir ordem ou requisição inconstitucional e proceder em incompatibilidade com o decoro e a dignidade do cargo
Alegou o então Ministro, que o Presidente da República intentou acessar diretamente informações sigilosas sobre atividade policial federal.
A atividade policial está regida pela discrição, cabendo a autoridade resguardar o sigilo necessário a sua elucidação (art. 20/CPP), inclusive com restrição de acesso. O controle da atividade policial é feito externamente pelo Ministério Público e Poder Judiciário e internamente pelas suas ferramentas de corregedoria dentro do devido processo administrativo.
Não há qualquer justificativa dentre as competências da Presidência da República para acompanhar pari passo inquéritos policiais. Poderia ter, dentro da normativa atual que ainda não garante a necessária autonomia administrativa da Polícia Federal, alguma interferência na gestão da instituição, jamais nas suas atividades de polícia judiciária.
Pelo que a eventual requisição de acesso indevido se amolda ao tipo do art. 9º, 4, da Lei dos Crimes de Responsabilidade.
Ainda que a nomeação e exoneração de todo cargo em comissão no poder executivo federal seja, em última análise, ato discricionário do Presidente da República, esta não pode ser oriunda de motivos determinantes ilícitos, abusivos ou falsos, como descreve a jurisprudência mais moderna.
Assim, caso se demonstre que a exoneração do DG/DPF está calcada em fato inexistente (pedido falso) e decorrente da sua resistência a ordens/requisições ilegais (acesso a dados sigilosos), o ato de exoneração seria eivado de abuso de poder, configurando também crime de responsabilidade.
Também a inclusão de informação sabidamente inverídica, como a assinatura de Ministro em ato oficialsem a sua concordância, poderia ser considerado ato indigno da Presidência da República – desde que se verifique a consciência do Presidente de todas estas circunstâncias.
b) Ato de Improbidade Administrativa
A Lei de Improbidade Administrativa aplica-se a todos os agentes públicos e aos particulares que lidem com a administração pública, tendo escopo mais amplo que os crimes de responsabilidade. A natureza das suas infrações é civil-administrativa e seu julgamento ocorre no Poder Judiciário, sem direito a foro por prerrogativa de função – foro privilegiado.
A despeito de antiga alegação, não há qualquer dependência ou prejuízo entre o julgamento/sanção de um único fato como crime de responsabilidade e como ato de improbidade, dada a independência dos poderes.
A improbidade administrativa é apurada em ação civil pública (ACP) que pode ser proposta não só pelo Ministério Público, como pela advocacia pública e por entidades da sociedade civil.
A definição de ato de improbidade administrativa depende um dolo, vontade objetiva, de descumprir a lei, de angariar alguma vertente de vantagem indevida, ainda que não financeira, nos atos do agente público.
Art. 11. Constitui ato de improbidade administrativa que atenta contra os princípios da administração pública qualquer ação ou omissão que viole os deveres de honestidade, imparcialidade, legalidade, e lealdade às instituições, e notadamente:
I – praticar ato visando fim proibido em lei ou regulamento ou diverso daquele previsto, na regra de competência;
Novamente, o tipo é amplo, indeterminado e propositalmente aberto.
A requisição de obtenção de informações, ainda que mal sucedida, é a prática de ato com finalidade ilegal. Demonstrada a sua ocorrência, estaria presente o ato improbo punível.
Art. 11. Constitui ato de improbidade administrativa que atenta contra os princípios da administração pública qualquer ação ou omissão que viole os deveres de honestidade (…).
IV – negar publicidade aos atos oficiais;
Os atos administrativos tem como elemento a publicidade (art. 37, CR), devendo estar embasados nos princípios da administração pública, entre eles a transparência e a probidade. Esta transparência, registrada pela ampla publicidade nos meios adequados, deve dar à luz a verdade. A divulgação de informação inverídica é uma não-publicidade, pois serve para esconder a real motivação – outro elemento do ato administrativo.
Assim, a divulgações de informações inverídicas sobre o motivo do ato – se a pedido ou ex oficio – e sobre o processo que o embasou – a concordância ou não de Ministro de Estado – equivale a negar publicidade honesta ao ato oficial, incorrendo no tipo do art. 11, IV, da Lei 8.429/92.
c) Crimes Comuns.
O Presidente da República responde pelos crimes comuns – isto é, os tipos penais estritos, distintos dos crimes de responsabilidade – perante o Supremo Tribunal Federal (STF), em ação penal a ser movida pelo Procurador-Geral da República (PGR), conforme art. 102, I, b, CR.
O direito penal está submetido ao princípio da reserva de lei, da legalidade estrita. Não há crime sem lei anterior, escrita e estrita. O dolo – a intenção – também deve ser específico e todos os elementos do tipo penal devem ser especificamente atendidos.
Art. 299 – Omitir, em documento público ou particular, declaração que dele devia constar, ou nele inserir ou fazer inserir declaração falsa ou diversa da que devia ser escrita, com o fim de prejudicar direito, criar obrigação ou alterar a verdade sobre fato juridicamente relevante:
Pena – reclusão, de um a cinco anos, e multa, se o documento é público, e reclusão de um a três anos, e multa, de quinhentos mil réis a cinco contos de réis, se o documento é particular. (Vide Lei nº 7.209, de 1984)
Parágrafo único – Se o agente é funcionário público, e comete o crime prevalecendo-se do cargo, ou se a falsificação ou alteração é de assentamento de registro civil, aumenta-se a pena de sexta parte.
A configuração do crime de falsidade ideológica em documento público no caso da suposta informação inverídica no Diário Oficial da União, dependeria dos seguintes elementos a serem provados: i) Ciência e ordem do Presidente para inserção de informação que sabia inverídica; ii) Relevância jurídica do fato: o patrimônio jurídico de algum dos envolvidos teria de ter algum crescimento ou decrescimento comprovado.
Caberia a discussão, por exemplo, se a inclusão alegadamente indevida da assinatura do Ministro teria a relevância jurídica suficiente para completar este elemento do tipo penal.
*Texto escrito pelo advogado Fabio Monteiro Lima, Sócio-fundador da Lima & Volpatti Advogados Associados.