SOBRE MÁSCARAS, BALANÇAS VICIADAS E ESPADAS EMBAINHADAS

O Poder Judiciário sabe muito bem da necessidade de proteger os seus magistrados e servidores da SARS-COV-2. O Conselho Nacional de Justiça, dentro da sua competência de “controle da atuação administrativa e financeira do Poder Judiciário” (art. 103-b, §4º, da Constituição), lançou Portarias normatizando as medidas de prevenção. Entre elas, a aplicação máxima do trabalho remoto, inclusive com a realização de audiências on-line e discute mesmo a realização do Tribunal do Júri, o mais solene e delicado ritual judicial, à distância.

Os Tribunais locais, naturalmente, aprofundam estas medidas. O TRF-1, responsável por rever as causas contra a União em 14 estados, além de não receber os advogados, sequer atende o telefone em suas varas. Agendamento por e-mail, com a mesma frieza do sistema eletrônico de processos. O direito dos advogados à audiência com os magistrados (art. 7º, da Lei da OAB), antes já tratado sem prioridade, agora é quase inexistente. E não se vê palavra da Ordem sobre isso.

Esta é a Justiça de máscara.

Porém, a Justiça foi além, e, para evitar a transmissão viral por superfícies, embainhou a espada e desmontou a balança.

O CNJ expediu a Resolução n. 66/2020, recomendando a todos os julgadores que reconheçam a essencialidade das medidas tomadas pelos gestores dos serviços  de saúde e assegurem-lhes as condições mínimas para o enfrentamento da pandemia de Covid-19, compatibilizando as decisões com a preservação da saúde dos profissionais da saúde, dos agentes públicos e dos usuários do Sistema Único de Saúde – SUS e da Saúde Suplementar.

No mesmo sentido, o Conselho Nacional do Ministério Público, órgão simétrico ao CNJ, também recomendou – através do seu presidente, Augusto Aras, e do seu corregedor-geral – “aos membros do Ministério Público brasileiro que, na fiscalização de atos de execução de políticas públicas, seja respeitada a autonomia administrativa do gestor e observado o limite de análise objetiva de sua legalidade formal e material” (art. 2º da Recomendação Conjunta 02/2020).

Por estas e outras oblíquas palavras, a Resolução busca invadir o mérito das decisões judiciais, dando um voto de confiança genérico, um cheque em branco aos gestores, ao Poder Executivo. O Conselho Nacional de Justiça, que tem dever de zelar pela autonomia do Poder Judiciário (art. 103-b, §4º, I, CR) e não tem competência para apreciar decisões em processos judiciais, está recomendando – pois sabe que não poderia determinar – aos juízes que se abstenham de intervir nas decisões administrativas.

Vale lembrar que o CNJ faz a correição, isto é, impõe as sanções administrativas aos juízes, portanto é uma recomendação com um aviso oculto – caso descumpra, pode responder um processo administrativo disciplinar ou coisa que o valha.

Ora, os limites da intervenção judicial em questões administrativas é um debate antigo no Direito em todo o mundo democrático, e também no Brasil. Em poucas linhas, ao Judiciário cabe o controle de legalidade – avaliar se a decisão partiu de autoridade competente, está amparada em lei, tem fundamentos técnicos, atende aos princípios constitucionais aplicáveis, respeitou o devido processo legal e outros parâmetros – e aquilo que estiver na janela técnica de opções, o mérito administrativo, não deve ser questionado.

Obviamente que esta regra apenas pode ser verificada no caso concreto, e por vezes, com ou sem pandemia, juízes a desrespeitam por abuso ou omissão. Mas a resposta a estes equívocos se dá no processo judicial, mediante os recursos, ações e estratégias que estão à disposição do poder público, em grande vantagem sobre os cidadãos neste aspecto.

Disposições que valem para o Ministério Público, os promotores e procuradores tem autonomia para bem cumprir seu dever de fazer o controle de legalidade dos atos administrativos nos mesmos parâmetros. Nesta crise, a necessidade de exercerem esta competência aumenta, não diminui. E os eventuais excessos serão verificados no caso concreto. Outra recomendação que ultrapassa as competências do Conselho, mas que utiliza do posto de Corregedor-geral para dar a impressão de que medidas de correição e punição podem ser tomadas contra promotores no exercício de suas funções.

Não pode, jamais, haver uma censura prévia judicial. A pandemia não revogou o direito dos cidadãos de acesso à Justiça, ao devido processo legal. Não suspendeu os deveres da administração de respeito à legalidade, à motivação, à transparência, à moralidade, à impessoalidade (art. 37, CR). Não apagou o papel de controle externo pela sociedade civil, pelo Ministério Público. Muito menos deu poderes ao CNJ, um órgão de controle administrativo da Justiça, para legislar, e para controlar como decidem os juízes, dentro da autonomia que a Constituição lhes garante.

Pelo contrário, neste estado de crise, pode haver abusos de toda sorte pelo Executivo, desrespeitando a ciência, a Lei e a Constituição. E a sociedade deve estar alerta, também via MP, e conter estes desvios, momento em que o Poder que a socorre será o Judiciário, não para se substituir ao gestor eleito, mas para conter e reparar abusos.

Em outras palavras, a harmonia entre os poderes não pode virar subserviência e a máscara não pode virar mordaça e calar a voz da Justiça.

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