Como amplamente divulgado nas mídias, o caso envolvendo a Mariana Borges Ferreira, que afirma ter sido violentada sexualmente pelo empresário André de Camargo Aranha, foi alvo de críticas após a divulgação de cenas da audiência atacando a jovem vítima pela The Intercept Brasil.
Primeiramente, consta evidenciar que neste texto não será abordado o comportamento até então silente do juiz e do promotor, tendo em vista que o caso corre em segredo e não obtivemos a gravação em sua totalidade da audiência.
O ponto alvo a ser discutido é a atuação da defesa incumbido ao advogado Cláudio Gastão da Rosa Filho, representante do André de Camargo Aranha, que gerou grandes revoltas perante a tática usada para vestir a vítima de culpa, se aproveitando do passado e de xingamentos perante a ela.
Consta na gravação, que o advogado de defesa usou de táticas argilosas para inverter, de certa forma, o ônus da prova. Foi apresentada imagens da vítima a qual o advogado de defesa afirmou que a vítima fazia poses “ginecológicas”. Tudo isso para reforçar uma narrativa de que a vítima estaria em busca de vantagem financeira no caso.
É apontado, pelo mesmo advogado, ofensas diretas a vítima durante a audiência. O defensor chegou a afirmar que “jamais teria uma filha” do “nível da Mariana” e que também pedia a Deus que o seu “filho não encontre uma mulher” que nem a vítima.
Ao ser questionado pela vítima alegando que a roupa e as posições sensuais das fotos apresentadas não interferem no caráter de uma mulher, teve como resposta que “não adianta vir com esse teu choro dissimulado, falso e essa lábia de crocodilo”. Sendo necessário a vítima pedir ao juiz que presidia a sessão por respeito, alegando que nem assassinos eram tratados daquela forma perante audiência.
Infelizmente ainda nos deparamos em um sistema que pode revitimizar a vítima e julgá-la pela sua maneira de se vestir, pelo seu comportamento, pelos lugares que frequenta e, inclusive, por sua atuação nas mídias sociais.
Acaba se construindo uma situação em que a vítima que já foi violentada, passa novamente por essa situação, mas desta vez sendo exposta diante a várias pessoas, causando uma espécie de culpa própria pelo crime que foi cometido a ela.
Obviamente, a vítima acaba sendo alvo injustamente de um machismo estruturado que se encontra nos mais diversos aspectos dentro da sociedade, sendo normalizado por muitas décadas, que impetrou e propaga até hoje, as desigualdades de direitos entre homens e mulheres, seja nos altos índices de violência, assédio, estupro, objetificação da mulher, diferença salarial entre outros.
A imagem que a mulher deve se portar e se vestir de forma “adequada” para não entrar em situações que provoquem o sexo oposto, nada mais é que uma desigualdade clara e evidente da ignorância que se submetem apesar de possuir direito a igualdade e liberdade perante os mesmos homens conviventes na mesma sociedade.
Toda mulher, independente da forma que se encontra, é um ser humano igual aos demais. Ao ter uma ação penal em curso de violência sexual, que põe sobre julgamento valores de uma mulher pelo simples fato de se vestir, se portar, ou do lugar que se encontrava, raramente é destinado o mesmo tratamento ao sexo masculino, pois não é incomum na visão da maioria homens se vestirem e se comportarem de maneira mais livre, não recebendo a mesma carga de culpa que o sexo feminino nas mesmas situações.
Nesse ponto, se torna evidente o distanciamento de visões e críticas que mulher chega a suportar comparado ao homem, pois apesar de cada um ser dono do próprio corpo, há um entendimento maior subentendido, que antes de pertencer a mulher, o seu corpo deverá ser alvo de uma aprovação dos demais componentes da sociedade para que assim possa ser considerada uma “boa mulher” diante a visão dos homens.
Muito se questiona se houve ou não o consentimento da vítima, e se teria como o acusado conhecer, de fato, o estado ou da idade da vítima. A defesa alega que não teria nenhum meio para que Aranha pudesse constatar que a vítima estava em situação de vulnerabilidade e, por isso, acreditou que não estaria cometendo algo ilícito.
Em casos de abuso sexual, nem sempre há como provar a falta de consentimento na situação. Portanto, é preciso que os tribunais tenham um posicionamento firme pela consideração da palavra da vítima como prova de estupro, pois os laudos periciais desses casos podem não ser conclusivos, além de o estupro ser um crime que ocorre na grande parte sem testemunhas, e em quatro paredes.
A dificuldade para provar o ocorrido e a desconsideração da palavra da vítima, abre uma grande porta aos homens que se veem nessa situação, de escaparem pela porta da frente, deixando a vítima como a parte exposta e julgada pela situação que ocorreu. Se não é possível julgar alguém somente com a palavra da vítima, então é dever da justiça, principalmente na área da investigação criminal, buscar os mais diversos meios para conseguir informações completas sobre o ocorrido, e não jogar toda a responsabilidade de produção de provas para a vítima.
A repercussão de casos como o da Mariana, em que a vítima é mal tratada pelo sistema que deveria ser de acolhimento, aumenta a sensação de desconfiança por parte das vítimas, que podem não se sentir à vontade em acionar a máquina judiciaria a fim de garantir seus direitos.
É urgente e necessária uma capacitação dos profissionais que lidam com casos de estupro para que estes entendam o funcionamento da violência de gênero. O servidor que não foi sensibilizado não entende isso e recrimina a mulher. Essa não compreensão da complexidade, que é inerente nesses crimes, acaba motivando alguns desses funcionários a ter esse tipo de comportamento [de desestimular a vítima]. Isso porque o profissional sem qualificação adequada reproduz o senso comum que, em uma sociedade sexista, resulta na negligência e minimização do problema da mulher.[1]
Se o Brasil é um pais que tem como mantra a igualdade, a liberdade e progresso, ele não pode fechar os olhos diante aos numerosos casos de estupro existentes, a qual apenas parte deles chegam na justiça, e acaba considerando a vítima a única “condenada”, sendo humilhada e culpada pelos seus atos.
E quando a vítima é atacada pelo advogado da outra parte? Até onde o advogado do réu pode ir para defender o seu cliente?
Destarte, é evidente que a partir do momento que o defensor ultrapassa os limites de bom senso e respeito diante a outra parte, usando da humilhação, do constrangimento, e da ofensa pessoal direcionada para diminuir a vítima para o convencimento do juízo, principalmente em crimes de grande relevância social, ele deve ser responsabilizado pelos excessos que vai além da esfera de imunidade que lhe é concedida.
É previsto nos arts. 133, da Constituição federal, art. 142, I, do Código Penal Brasileiro, art. 7, §2ª, da lei 8.906 (Estatuto da Advocacia e a Ordem dos Advogados do Brasil) a imunidade profissional do advogado, isentando de responsabilidade criminal com relação a crimes de difamação e injuria.
Art. 133. O advogado é indispensável à administração da justiça, sendo inviolável por seus atos e manifestações no exercício da profissão, nos limites da lei.
Art. 142 – Não constituem injúria ou difamação punível:
I – a ofensa irrogada em juízo, na discussão da causa, pela parte ou por seu procurador;
Art. 7º São direitos do advogado:
§ 2º O advogado tem imunidade profissional, não constituindo
injúria, difamação ou desacato puníveis qualquer manifestação
de sua parte, no exercício de sua atividade, em juízo ou fora dele, sem
prejuízo das sanções disciplinares perante a OAB, pelos excessos que
cometer. (Vide ADIN 1.127-8)
Porém, apesar da previsão legal, já é existente entendimentos no Superior Tribunal Federal e no Superior Tribunal de Justiça, que esse direito não tem caráter absoluto.
SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL
VOTO- MIN, DIAS TOFFOLI
INTEIRO TEOR DO ACORDÃO – PAG 7 DE 9
HC 105.134/SP
[…] ressalto que o Supremo Tribunal Federal já fixou o entendimento de que não e absoluta a inviolabilidade do advogado por seus atos e manifestações, o que não infirma a abrangência que a Magna Cata conferiu ao instituto, de cujo manto protetor se excluem atos, gestos ou palavras que manifestamente desbordem do exercício da profissão, como a agressão (física ou moral), o insulto pessoal e a humilhação pública. A proclamada imunidade profissional do advogado não é absoluta. […]
ADVOGADO. INVIOLABILIDADE E IMUNIDADE JUDICIARIA (ART. 133 DA CF, 142, I, DOCP, E 7., PAR. 2., DO ESTATUTO DA OAB, LEI 8.906/94). O ADVOGADO QUE UTILIZA LINGUAGEM EXCESSIVA E DESNECESSÁRIA, FORA DELIMITES RAZOÁVEIS DA DISCUSSÃO DA CAUSA E DA DEFESA DE DIREITOS, CONTINUA RESPONSÁVEL PENALMENTE. ALCANCE DO PAR. 2. DO ART. 7. DA LEI 8.906/94 FRENTE A CONSTITUIÇÃO FEDERAL (ARTS. 5., CAPUT, E 133). SUSPENSÃO PARCIAL DO PRECEITO PELO STF NA ADI N. 1.127-8. JURISPRUDÊNCIA PREDOMINANTE NO STF E STJ. A PARTIR DA CONSTITUIÇÃO DE 1988. SERIA ODIOSA QUALQUER INTERPRETAÇÃO DA LEGISLAÇÃO VIGENTE CONDUCENTE CONCLUSÃO ABSURDA DE QUE O NOVO ESTATUTO DA OAB TERIA INSTITUÍDO, EM FAVOR DA NOBRE CLASSE DOS ADVOGADOS, IMUNIDADE PENAL AMPLA E ABSOLUTA, NOS CRIMES CONTRA A HONRA E ATÉ NO DESACATO, IMUNIDADE ESSA NÃO CONFERIDA AO CIDADÃO BRASILEIRO, AS PARTES LITIGANTES, NEM MESMO AOS JUÍZES E PROMOTORES. O NOBRE EXERCÍCIO DA ADVOCACIA NÃO SE CONFUNDE COM UM ATO DE GUERRA EM QUE TODAS AS ARMAS, POR MAIS DESLEAIS QUE SEJAM, POSSAM SER UTILIZADAS. RECURSO DE HABEAS CORPUS A QUE SE NEGA PROVIMENTO.
(STJ -RHC; 4056 RJ 1994/0031877-4, RELATOR: MINISTRO ASSIS TOLEDO, DATA DE JULGAMENTO: 21/11/1994. T5- QUINTA TURMA. DATA DE PUBLICAÇÃO: DJ 06/03/1995 P. 4373)
Portanto se entende, que o advogado que se utiliza de linguagem excessiva e desnecessária perante o caso, fora de limites razoáveis da discussão da causa e da defesa de direitos, continua responsável penalmente.
O Superior Tribunal de Justiça, em outra oportunidade (RESP 932334/RS), asseverou: a imunidade profissional, garantida ao advogado pelo Estatuto da Advocacia não alberga os excessos cometidos pelo profissional em afronta à honra de quaisquer das pessoas envolvidas no processo, seja o magistrado, a parte, o membro do Ministério Público, o serventuário ou o advogado da parte contrária.
DIREITO CIVIL. DANO MORAL. INDENIZAÇÃO. ADVOGADO. EXCESSO. INAPLICABILIDADE DA “IMUNIDADE” PROFISSIONAL. DEFERIDA PELO ESTATUTO DA ADVOCACIA E DA OAB. PRECEDENTES. RECURSO DESACOLHIDO. I – A imunidade garantida ao advogado pelo novo Estatuto da Advocacia e da OAB não alberga os excessos cometidos pelo profissional em afronta a honra de qualquer das pessoas envolvidas no processo, seja o magistrado, a parte, o membro do Ministério Público, o serventuário ou o advogado da parte contraria. II – Segundo firme jurisprudência da Corte, a imunidade conferida ao advogado no exercício da sua bela e árdua profissão não constitui um “bill of indemnity”. III – A indenização por dano moral dispensa a prática de crime, bastante a aferição da ocorrência do dano pela atuação do réu. (REsp 151.840/MG, Quarta Turma, Rel. Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira, DJ 23.08.1999)
Sendo portanto, clara e evidente que o exercício do advogado de defesa perante casos delicados como o da vítima aqui citada, ou demais casos da mesma natureza, DEVEM SIM se manter num limite de bom senso e respeito, não cabendo agir de modo humilhante e ofensivo, sob pena de ir desacordo com os precedentes dos tribunais superiores brasileiros.
É importante frisar, que o advogado deve se ater ao fatos do processos, sendo a atitude de convocar a vida intima ou passada que nada tenha a ver com os autos, da mulher que encontra no papel de vítima, incabível, sendo necessário uma ação do juiz que preside a audiência para notificar a retomada ao que está sendo discutido de fato.
O papel de se defender trocando o ônus da prova para vítimas de estupro, apesar de ser uma prática bastante usada, deve ser desestimulada, pois é baseada em um machismo estrutural que nada tem a ver com o caráter da mulher presente nos fatos.
Por fim, o cargo de advogado é
de suma importância, atraindo respeito e admiração pelos seus atos. Portanto,
independente da representação que se faz, perante a acusação ou a defesa, é
necessário agir com honra e caráter diante o processo, sendo devido a educação
e o respeito a todas as partes.
[1] Ghersel, Giovanna Pacheco Lomba. A APLICABILIDADE DA CONSTELAÇÃO FAMILIAR SISTÊMICA NOS CASOS DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA NO DISTRITO FEDERAL – entrevista com ÁVILA, Thiago Pierobom de, Entrevista, Promotoria de Justiça de Brasília II, Fórum Desembargador José Júlio Leal Fagundes, SMAS (Setor de Múltiplas Atividades Sul), Trecho 3, Lotes 4/6, Bloco 4, 2° andar, Brasília-DF. 12/07/2017