O tribunal do júri é uma instituição presente nos mais diversos países, no qual atua em cada lugar de acordo com a sua lei suprema. Decorre de uma idealização de um direito daquele que compõem o polo passivo diante da acusação de crime doloso contra a vida, de ser julgado pelos seus semelhantes no exercício da democracia.
No Brasil, a previsão do instituto ocorreu antes da declaração de independência pela lei de 18.06.1822 e desde desse período, o instituto se desenvolveu e se estabeleceu no modelo que atua hoje em crimes dolosos contra a vida.
O Tribunal do Júri tem previsão no art. 5.º, XXXVIII, da Carta da República de 1988. É constituído por um juiz presidente (direito ou federal), além de 25 jurados, dos quais, 7 serão sorteados aleatoriamente para constituir o Conselho de Sentença, cabendo frisar que o jurado que houver participado do Conselho nos últimos doze meses, não poderá ser alistado no ano seguinte.
Mas como apontado acima, a principal característica do tribunal do júri é sua composição por cidadãos comuns, sem a necessária formação jurídica, no qual determina a condenação ou absolvição do réu.
É de se esperar que pela falta do conhecimento jurídico, ocorra uma certa dificuldade de entendimento dos jurados perante o caso, e nesse ponto o papel do advogado é extremamente relevante. Busca-se conquistar a simpatia de cada jurado, ou pelo menos da maioria, através do sentimentalismo, pois nesse momento o que está em questão não é aplicação direta da letra da lei, mas o induzimento que naquele contexto no qual o crime ocorreu, houve um motivo maior.
A interpretação, eloquência e o poder do convencimento, são fatores decisivos no convencimento do júri, a capacidade de atrair atenção dos jurados para o advogado que esta apresentando, pode ser fator decisivo na votação ao seu favor, portanto, o discurso deve ser interessante e cativante, para que os jurados indiferentes e que venham a ficar sonolentos, possam prestar atenção.
Se assemelha a própria atuação de um teatro, no qual o advogado é o artista que se utiliza de um arsenal de técnicas apropriadas para cada momento, como: dicção, entonação da voz, gestualidade, vestimenta e a movimentação calculada de seus passos dentro do plenário.
O autor Vinicius Galvão em sua obra “O júri e a sua retorica: a lógica do discurso” discorre que “o jurado por ser leigo e não ter como rotina profissional a analise de processos criminais, tende, naturalmente, a se emocionar com a exposição do caso e a dor das famílias enlutadas” e aponta também “o juiz togado como plantonista do pronto – socorro, lida tecnicamente com a situação exposta ao seu oficio, e em função disso muitas das vezes deixa de se emocionar ou aprende controlar as emoções”.
Desse modo, a função do defensor diante o conselho, é colocar os próprios jurados no corpo do acusado, demonstrado os motivos que o levaram a cometer o crime, ou as circunstancias infundadas no qual esta sendo julgado, para que seja visto como um cidadão honesto, vitima da sociedade, merecedor do perdão e digno dos sentimentos de piedade, tolerância e atenção.
Enquanto o promotor tentará desmascarar todos esses sentimentos se usando a dor a qual a vítima presenciou e a dos fatos alegados, tentado despertar o sentimento de indignação e repulsa a impunidade do seio dos jurados que representa a sociedade.
Para o promotor Vinicius Alcântara Galvão, é importante o estudo atentamente dos autos, atentando-se aos detalhes, visto que a capacidade da oratória é discutível, mas o convencimento sobre os autos não. Além disso, deve se buscar conhecer os jurados, na busca de entender quais são mais propensos a decidir sobre a absolvição ou condenação.
Tudo se baseia no final, na escolha de profissional que seja competente e familiarizado com o tribunal do júri, para que possa elaborar um plano estratégico, através de um estudo profundo ao caso, devendo possuir uma excelente oratória e o posicionamento seguro da fala, para que assim possa se destacar e convencer o conselho do seu ponto de vista.
Trago 2 exemplos de julgamentos reais do júri do artigo “Tribunal do júri e o livre convencimento dos jurados[1]” publicado na Revista Brasileira de Ciências Criminais, no qual ocorreu predominância da absolvição, mesmo diante de um crime doloso contra a vida, na visão apresentada perante o júri.
- Caso “Augusto Gallo e Margot Proença”
Era dia 3 de novembro de 1970, às 18 horas, quando a empregada do casal Carlos Eduardo Gallo e Margot Proença, conforme o costume, avisou que poderiam jantar, pois já estava na hora. Às terças-feiras, precisavam estar atentos porque Gallo tinha compromisso. Jantava e saía sem demora para atender ao horário da sua aula. Assim, soou muito estranho para ele o fato de Margot anunciar que teria de sair, estaria fora por pouco tempo. Voltaria em 5 minutos. Intrigado, resolveu segui-la. Ela se dirigiu para o correio. Ia postar uma carta.
Cuidadosamente, ele se aproximou do guichê. Postou-se atrás dela e, sem que ela se desse conta do que estava acontecendo, arrebatou-lhe da mão a carta que entregava à funcionária. Margot, surpresa, reage e tenta resgatá-la. Rasga-se a carta ao meio. Num gesto rápido, Gallo coloca no bolso da calça o que conseguira capturar. A mulher, desesperada, tenta resgatar a outra metade da carta. Tentativa frustrada. Que há de ter pensado a funcionária estarrecida, ante tão insólita cena? Mas o pior ainda está por vir. Com que ansiedade, ao chegar à casa toma ele nas mãos trêmulas a carta rasgada. Um abismo se abre naqueles segundos que correm entre o gesto das mãos e a leitura da carta esfacelada. Que desespero sentiu ao ler as frases que mal começavam a denunciar e logo se calavam. Que desespero no querer adivinhar o que lá, na outra metade da carta, estava a se revelar. Precisava saber toda a verdade, pois que parte dela terrivelmente já se expressava. Ali se encontrava uma declaração de amor. A carta era enviada ao professor Ives Gentilhomme, um francês que estivera em Campinas a ministrar aulas em curso de que Margot participara.
Era uma terça-feira. Uma entre tantas outras já vividas. O homem se prepara para jantar com sua esposa num ato rotineiro, mas tudo se transtorna e começa ali a viver o inferno da sua vida. Descobre que era traído por sua esposa. Sente-se ultrajado, humilhado, derrotado.
Não tardou muito e Margot voltou para a casa. Enlouquecido, com uma arma de fogo na mão, ameaçou-a. Tresloucado, espancou-a e empurrou-a para dentro do carro. Apontou a arma para a cabeça da mulher. Iria vingar-se, acabaria com ela, lavaria sua honra. Mas não disparou tiro algum. Faltou-lhe coragem para matá-la e coragem também lhe faltava para continuar vivendo depois que descobriu a traição. Entregou-lhe o revólver pedindo que o matasse. A mulher não se importou com ele, ela queria escapar, tenta sair do carro. Mas não conseguiu. Gallo, ainda mais desesperado, tentou jogar o carro contra algum obstáculo. Ele mesmo, posteriormente, declararia sua intenção de solucionar o caso buscando a morte de ambos. Se juntos já não poderiam estar na vida, que juntos continuassem na morte. Uma vez mais se acovardou. O que ele, verdadeiramente, queria não era a morte, era a vida. Já poderia tê-la matado, mas não o fez. Já poderia ter-se matado, mas não o fez. Isto porque ele queria a vida. Lembremos suas próprias declarações: “Lançou ridiculamente um carro contra um poste, nada acontecendo”. Repetiu a cena, nada aconteceu. Era pouca a velocidade do carro. A mulher, afinal, consegue escapar. Profundamente humilhado, ridicularizado na hora da dor, reconheceu o quanto fora risível. Deprimido, Gallo voltou para a casa. Enquanto o Procurador do Estado, o respeitado professor, é ansiosamente aguardado por seus alunos para mais uma lição de vida, o pobre homem humilhado, ultrajado, deprimido, derrotado, desespera-se na mais cruenta descoberta de que era um marido traído.
Margot não tardou a chegar acompanhada do Delegado de Polícia Luiz Hernandes, que procurou controlar a situação. Passados aquele momento tão difícil, a decisão de Gallo foi afastar-se de casa, viajar para algum lugar. Margot esclareceu que não havia nada entre ela e o professor de francês, definindo o ocorrido como um devaneio literário, argumentando que seria impossível manter um relacionamento com alguém que morava tão longe.
Acompanhando o desenrolar dos fatos, vamos encontrar Gallo bastante tenso e sob efeito constante de tranquilizantes. A que ponto chegara, há de ter ele pensado. Sentia arrependimento por ter agredido a companheira. Jamais levantara a mão contra ela. Como há de ter sido grande a luta que travava no seu íntimo. Ela se expressava nos seus atos. Prometeu à companheira um carro novo e tentou fazer as pazes. Ele demonstrou o desejo de apaziguamento na relação conjugal. A luta interior provavelmente não lhe dava trégua. Revela insegurança, mágoa, medo, revolta. Isso se evidencia nas condições que impunha para reconciliação: queria que ela confessasse a ele os seus “pecados” a fim de que tivessem as condições para recomeçar uma vida “limpa”. O quanto se pode depreender da expressão: “vida limpa”. Buscava, assim, os meios para poderem continuar uma vida a dois. Uma vida passada a limpo.
A esperança de reorganizar o lar logo foi liquidada por informações dadas pela empregada Zenilda. Ela intrigou Gallo ao contar que o professor francês frequentava a residência do casal quando ele viajava. “(…) Gallo, então, iniciou uma investigação particular para encontrar as provas de infidelidade de Margot, inquirindo várias pessoas que tinham, de alguma forma, convivido com a família. Depois, levou as suas testemunhas para contar o que sabiam ao juiz de família da Comarca, já preparando um desquite por culpa da mulher. Entre os que foram ouvidos, estava a filha do casal, Maitê, então com 12 anos de idade, que prestou declarações ao Juiz José Augusto Marin, informando ter visto o mencionado professor na cama de sua mãe, vestido de pijama. Gallo tinha medo de perder a guarda dos filhos e queria garantir que as crianças ficassem com ele após a separação. (…). Também foi prestar declarações o filho de criação do casal, que, na época, tinha 23 anos, Jorge das Dores Silva, o Zuza. Certa vez, ele surpreendera Margot em casa em companhia de um oficial do Exército. O outro filho do casal, Renê Augusto, tinha 7 e não foi ouvido pelo juiz por ser muito criança. Zenilda também contou o que vira ao magistrado”.
Gallo já tinha ouvido tantas informações, tantos fatos revelados nos depoimentos prestados. Mas não estava satisfeito. Precisava saber mais, ter mais certeza. Procurou uma empregada que trabalhou para o casal num tempo em que eles viviam bem. Perguntou a ela, se naquela época ela teria notado alguma conduta estranha por parte de Margot. Ela relatou que havia percebido um relacionamento da sua esposa com um ex-aluno que se chamava Milton, pois eles se trancavam no escritório quando o marido se ausentava de casa.
feliz, não dava mais para esperar. Chegara ao fundo do poço. Era humilhação demais. Marcou de se encontrar com a mulher no dia 7 de novembro para discutirem o desquite que, segundo ele, seria amigável. Mas exigiu que a sogra não estivesse presente, pois poderia intrometer-se. Chegando a casa no dia marcado, encontrou a mulher na porta. Ela vestia blusa branca de algodão e saia xadrez nas cores verde e vermelho. Tanta alegria nessas cores a envolvê-la contrastando com o negror trevoso que envolvia sua alma. Ela tinha 37 anos, mas parecia uma colegial. Ele envelhecera brutalmente. Entraram juntos. Gallo, ao relembrar o fato, diz que falava com dificuldade porque estava deprimido, moralmente arrasado e sob efeito de medicamentos. Ao começar sua proposta, declarou que ele ficaria com os filhos, pois ela não apresentava condições morais para tanto. E acrescentou que, depois da separação, ela teria que sair da cidade porque sujara seu nome, transformando-o em “corno”, manchando a casa dos filhos ao dormir ali com outro homem. Cheia de rancor, por ouvir as imposições do marido, disse Margot que não concordava com nada do que ele queria. Asseverou que ele era um “burguesinho” preso a nojentas convenções sociais e, em seguida, admitiu que ela, realmente, havia tido outros homens.
Ah! O poder das palavras! Ele não passava de um burguesinho, expressão que definia o que ele representava para ela. No clímax da humilhação nesse tempo de guerra emocional, ele viu uma faca sobre o armário e a pegou, desferindo o primeiro golpe na mulher. O “burguesinho” se vingava. Facada após facada, Gallo via perder a vida aquela que um dia personificou seu paraíso e, naquele momento, representava o seu inferno. Após desferir 10 facadas, Gallo causou a morte de sua esposa.
No dia 17 daquele mesmo mês, Gallo apresentou-se à Polícia de Campinas e, ao ser interrogado, disse que estava “arrependido, mas sem consciência de culpa”. Iniciou-se o processo criminal.
Ao contrário da Constituição Federal atual, a Carta de 1969, vigente à época dos fatos, não previa a competência originária do Tribunal de Justiça para julgar procuradores de justiça, razão pela qual Gallo foi enviado a Júri Popular.
Apesar de todo o esforço do Ministério Público para condenar Gallo, os jurados, decidindo com a emoção acima da técnica jurídica, compreenderam a atitude do marido traído e o absolveram por unanimidade. Como Gallo era réu confesso e o extenso processo de 11 volumes apontava a autoria e materialidade do crime, após recurso do Parquet, o julgamento foi anulado pelo Tribunal de Justiça de São Paulo, pois a decisão era manifestamente contrária à prova dos autos, 85 conforme explicado anteriormente.
Em obediência ao Diploma Processual Penal, Gallo foi submetido a novo Júri e absolvido por 4 votos a 3. Com efeito, dispõe o Código de Processo Penal que:
“Art. 593. Caberá apelação no prazo de 5 (cinco) dias:
(…)
III – das decisões do Tribunal do Júri, quando:
(…)
d) for a decisão dos jurados manifestamente contrária à prova dos autos.
(…)
§ 3.º Se a apelação se fundar no n. III, d, deste artigo, e o tribunal ad quem se convencer de que a decisão dos jurados é manifestamente contrária à prova dos autos, dar-lhe-á provimento para sujeitar o réu a novo julgamento; não se admite, porém, pelo mesmo motivo, segunda apelação” (grifos nossos).
Não foram só os representantes da sociedade, por meio do exercício da Justiça Popular, que optaram por perdoar este homicídio passional: “Maitê Proença Gallo, que, posteriormente, tornou-se atriz de rara beleza e enorme sucesso, foi testemunha de defesa, ouvida em plenário do Júri. Sua narrativa corroborou a versão do pai e pesou muito na decisão absolutória dos jurados. Ela contou, em seu depoimento, que “viu o professor (Ives Gentilhomme) dormindo no sofá-cama utilizado pela mãe, na manhã seguinte à realização de uma festa em sua casa, em outubro de 1970”. Maitê disse a verdade sobre o que sabia; cumpriu seu dever (…). O que se passou em sua alma adolescente, somente ela sabe”.
- Caso “O Linchamento”
Barão Geraldo, um distrito da cidade de Campinas, na época conhecido como um local tranquilo para se viver, teve sua paz alterada com a chegada de dois irmãos que foram ali residir. Com o perfil agressivo e voltado para confusões, frequentemente se envolviam em desentendimentos com os moradores da região e, em não raras vezes, os agrediam.
Em meados da semana santa, os irmãos receberam a visita de um parente que residia em outra cidade, e os três, sedentos por tumulto, agrediram fisicamente uma pessoa. Este episódio foi o estopim para que os moradores do local, até então pacatos e sempre muito unidos, fizessem justiça com as próprias mãos. Colocaram fim ao caos que se iniciara com a chegada dos irmãos encrenqueiros.
Reunidos em um grupo de aproximadamente 17 integrantes, os cidadãos do distrito se dirigiram à casa dos irmãos e espancaram os três arruaceiros, que terminaram sua noite no hospital. Um deles permaneceu internado e por isso livrou-se da morte que se aproximava, enquanto os outros dois foram à delegacia de polícia registrar ocorrência. No sábado de aleluia, os 17 justiceiros retornaram à residência dos irmãos e os mataram. Os participantes do linchamento foram submetidos a Júri Popular e, surpreendentemente, absolvidos por unanimidade. Os jurados optaram por não punir a atrocidade, nitidamente cruel, que ocorre quando 17 pessoas resolvem matar duas: “Foi difícil ao membro do Ministério Público sustentar, no julgamento do primeiro réu (o processo fora desmembrado: alguns réus recorreram da sentença de pronúncia), a acusação – que era grave: homicídio qualificado –, tendo vítimas tão ruins (quer queira, quer não, os jurados, no crime de homicídio, julgam também a vítima). Parecia que o acusador estava com vontade de requerer a absolvição, mas ele sustentou o libelo. (…) os jurados, sem dúvida, julgando também as vítimas, absolveram este primeiro acusado por sete votos a zero. Pouco tempo depois, foi julgado o segundo acusado e o resultado foi quase o mesmo”.
Por
fim, há de se concluir que o dever de julgar é de extrema responsabilidade, ao
condenar ou absolver sempre haverá repercussões dentro da sociedade. A
capacidade de participação da população traz uma experiencia social ao olhar
cada caso concreto, aproximando a decisão a realidade da sociedade e seus
sentimentos derivados a cada situação fática. Nesse ponto, a boa preparação e os
conhecimentos específicos do caso e desse sistema julgamento se fazem necessários,
capaz por si próprio, de mudar o rumo de uma decisão.
[1] ALVES, Danielle e; NETO MASTRODI, Josué. Tribunal do Júri e o livre convencimento dos jurados. Revista Brasileira de Ciências Criminais, v. 116, set./ out. 2015. Disponível em: http://www.mpsp.mp.br/portal/page/portal/documentacao_e_divulgacao/doc_bibliotec a/bibli_servicos_produtos/bibli_boletim/bibli_bol_2006/RBCCrim_n.116.07.PDF. Acesso em: 05 set. 2020.