Todos sabemos que a alteração profunda na realidade sobre a qual foram estipuladas as normas jurídicas, sejam legais ou contratuais, mudou profundamente com a crise sem precedentes que o Brasil e o mundo enfrentam. A sociedade e o direito que dela decorrem mudaram e mudarão em sua decorrência. Porém, a crise também aprofunda situações tradicionais, como o ativismo judicial. O juízo heróico, atento aos princípios acima das regras, que reescreve contratos e leis em nome do bem e da justiça, está em voga. Mas até que ponto isto poderá mitigar ou aprofundar a crise?
Dentre tantos debates sobre a teoria do direito, a prática sempre se impõe. A cultura jurídica brasileira, dentro do que se convencionou chamar neoconstitucionalismo, adotou, bem ao seu modo, uma visão simplificada dos conceitos de valor jurídico dos princípios, sopesamento de regras e ponderação, que aparecem, por exemplo, nas obras de autores estrangeiros como Ronald Dworkin (EUA) e Robert Alexy (Alemanha), dentre tantos.
O cotidiano das decisões judiciais tomadas dentro de metas de produtividade e julgamentos em plenários virtuais – muito antes da pandemia – deixa de lado a complexidade procedimental destes autores, que exigiriam um juiz Hércules – com tempo e conhecimento quase ilimitados – para sua boa aplicação. Em verdade, como há muito descreve e critica Lênio Streck, criou-se uma ponderação à brasileira, superficial, em julgamentos de acordo com a consciência do julgador.
Isto é, diante de um caso qualquer, quase que independente dos argumentos e direitos em disputa, o julgador sente-se apto a afastar as regras e aplicar princípios que entenda cabíveis, da forma que preferir, inclusive misturando-os, ponderando. Este fenômeno que já está encrustado em nossa prática, está na raiz da insegurança jurídica e da fragilidade dos direitos.
A crise de saúde pública, que já se tornou também econômica – talvez a maior da história republicana brasileira – traz um grande trunfo para o juiz ponderador. Agora toda e qualquer norma – esteja disposta em contrato, lei ou na Constituição – deve ser sopesada, questionada, em nome da crise genericamente considerada.
Multiplicam-se as decisões liminares – isto é, sem ouvir a parte afetada – sobre interrupção no pagamento de tributos, aluguéis, pensões, financiamentos, contratos em geral.
Enquanto o Congresso Nacional debate a renegociação das dívidas dos estados com a União, pelo menos dezessete unidades já conseguiram a suspensão dos seus pagamentos, sob decisão liminar e individual de Ministro do Supremo Tribunal Federal (ACO 3373 e outras).
E não se cogite que esta ponderação irrefreada apenas proteja direitos. Ainda que a Constituição determine que o Congresso deva se reunir em Brasília e realizar audiências públicas em seus debates, emendas à Constituição são votadas on-line em rito sumário sob as bençãos liminares do STF (MS 37059). A redução de salários de trabalhadores, que a Constituição permite apenas por negociação coletiva, foi autorizada por “acordo” individual (ADI 6344). A Lei de Responsabilidade Fiscal foi praticamente suspensa, também por decisão individual (ADI 6357).
O supertrunfo argumentativo da crise permite ao julgador mandar pagar ou deixar de pagar ao seu bel prazer, modificar os orçamentos públicos e as obrigações privadas, apenas transferindo o inevitável custo da situação entre os atores sociais.
Ora, a partição destes custos deveria ser resolvida, inicialmente, pelo debate público entre os entes políticos, eleitos para representar a sociedade, e entre os indivíduos pela livre negociação dos direitos disponíveis. A judicialização, sobretudo a monocrática e liminar, pode ser mais danosa, pois sua compreensão da realidade é limitada e enviesada.
Obviamente que esta crítica não imagina ou defende um mundo de soberania irretocável dos poderes executivos e legislativos. Mesmo com a legitimidade do voto, também sofrem dos males do heroísmo, da urgência e da ausência de respeito aos direitos e nisto devem ser freados pelo Judiciário.
O Poder Executivo emitiu 25 Medidas Provisórias em menos de um mês de crise, com determinações tão questionáveis como redução da transparência pública e a redução de salários por ato individual. O Congresso Nacional fechou suas portas ao povo, mas continua a legislar também sobre temas extra-crise, inclusive com alteração constitucional para permitir ao Banco Central comprar dívidas privadas e anistiando atos administrativos duvidosos. Tudo isto é tema, porém, para outro artigo.
É necessário praticar a autocontenção judicial para que o direito não seja a próxima vítima desta doença tão contagiosa.