A revogação do estatuto do desarmamento é uma bandeira histórica de Jair Bolsonaro e da bancada da segurança (ou da bala, dependendo do ângulo), com diversos projetos de lei neste sentido na Câmara e no Senado Federal.Hoje o Estatuto do Desarmamento prevê dois institutos: a posse e o porte.Posse é o direito de manutenção de arma de fogo na residência ou estabelecimento comercial (art. 5º), reservado por lei aqueles que comprovem: (art. 4º):
- idoneidade moral (“ficha limpa”);
- ocupação lícita e residência fixa; [
- capacidade técnica (curso de tiro) e aptidão psicológica.
- Deve, ainda, “declarar efetiva necessidade”.
O porte, direito a circulação com arma de fogo, é restrito a categorias profissionais consideradas de risco por lei, atiradores esportivos (IX), residente em zona rural como caçador e, temporariamente, para quem demonstrar efetiva necessidade por profissão de risco ou ameaça pessoal.Ou seja, a posse é permitida sob condição, enquanto o porte é proibido com exceções.A chave da questão é a “declaração de efetiva necessidade” do art. 4º, que era considerada inapta pelas autoridades, restringindo a situações consideradas excepcionais.Com este Decreto, a efetiva necessidade passa a ser presumida – na posse – àqueles que residam (art. 12, §7º): III – área rural; IV – área urbana “em unidades federativas com índices anuais de mais de dez homicídios por cem mil habitantes, no ano de 2016, conforme os dados do Atlas da Violência 2018, produzido pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada e pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública.” O índice de 10m/100.000h não é de todo arbitrário, sendo o valor utilizado pela OMS (Organização Mundial de Saúde) como parâmetro para definir uma área endêmica de homicídios. Ocorre que, todos os estados brasileiros têm índice de homicídio em 2016 superior a 10 mortes/100.000 habitantes neste Atlas o que, efetivamente, afasta por completo qualquer avaliação de efetiva necessidade, extinguindo este critério.
A posse/aquisição de arma de fogo passa a ser permitida a todos que cumpram os demais critérios: idoneidade, ocupação lícita e residência fixa; curso de tiro e avaliação psicológica.Não vou entrar no debate sobre ser a favor ou contra armas, mas na competência constitucional do Presidente da República quanto a esta modificação trazida pelo Decreto.A Lei exige a declaração de efetiva necessidade como condição à aquisição/posse de arma. Pode-se entender que o decreto extinguiu esta exigência ao presumi-la atendida em todo o território nacional, ainda que com outras palavras.Obliquamente, o decreto teria – na prática – revogado um dispositivo de Lei. O poder do Presidente é para regulamentar a “fiel execução da Lei (art. 84, IV, da Constitução), nunca para afastá-la, diminuí-la ou subverte-lhe a lógica e a extensão.Ao tirar a eficácia restritiva de uma norma legal, o Decreto, neste particular, excede o poder regulamentar e fere a competência exclusiva do Congresso Nacional para legislar sobre matéria de competência da União (art. 44), tornando-o, em tese, inconstitucional.Obviamente, a matéria está sujeita a amplo debate. É possível argumentar que a lei exige apenas declaração de efetiva necessidade – documento que continua sendo requerido – e que nunca houve embasamento legal para o questionamento desta declaração pela autoridade policial. Tese, inclusive, que sempre foi defendida judicialmente pelos movimentos defensores da liberdade de auto-defesa armada.O futuro dirá sobre os resultados desta medida.