As ilegalidades e erros políticos da censura sobre a Revista Crusoé

Nossa democracia é jovem, incerta e vacilante. Para manter-se de pé demanda os esforços de todos nós. E o maior destes, é o autocontrole. Quando qualquer das partes em uma relação falha em limitar suas atuações, pode-se ter certeza que as demais vão reagir para limitá-la.

Toda ação implica em uma reação igual e contrária, física básica.

Pelo menos nos últimos vinte anos, o Brasil assistiu os parlamentos derreterem seu respeito popular, figurando normalmente entre as instituições menos confiáveis do país. Em um ciclo vicioso de omissão e corrupção demonstrada em processos como o Mensalão e a Lava-Jato, o Congresso se afastou do seu dever de decidir matérias e punir seus desvios. Com isso, fortaleceu o papel do Judiciário nestes pontos. Este ano, porém, tivemos a maior renovação da Câmara e do Senado, e esta nova geração quer marcar suas diferenças sobre as anteriores.

Não tardou para o Supremo ser convocado a julgar questões eminentemente morais ou o mérito de políticas públicas. Temas como aborto, cotas raciais, legalização de drogas, casamento homoafetivo e alimentos transgênicos – levaram a corte a tomar parte em assuntos que dividem a sociedade. Além, claro, do julgamento penal de boa parte da classe política, que capitalizou críticas de todos os lados a cada condenação ou alvará de soltura.

Este fenômeno, a judicialização da política, é necessariamente seguido por outro, a politização da justiça. Nenhum poder é tomado ou exercido sem resistência, como parece esquecer o Supremo. Arvorando-se no direito de errar por último, como dizia Ruy Barbosa citado por Celso de Mello, a corte perdeu suas amarras, passando lentamente a legislar e governar.

A última trava a soltar-se está representada pelo Inquérito das Fake News contra o STF. Uma investigação iniciada, conduzida, monitorada, posteriormente julgada pelas próprias supostas vítimas. Sem objeto limitado, sem parâmetros. Todo aquele que ofendeu ou vier a ofender a Corte ou um dos seus membros, no entendimento exclusivo destes próprios, é um alvo potencial.

A vítima como promotor, delegado, juiz e algoz. Não há notícia na civilização moderna de cenário similar. Até o nosso vizinho Maduro tem suas polícias e tribunais de fachada para perseguir os seus opositores.

Os desrespeitos ao Código de Processo Penal e à Constituição são incontáveis. A competência penal do Supremo é uma exceção, prevista no art. 102, II e III, da CF, basicamente referindo-se a caso de foro por prerrogativa de função – privilegiado – decorrente da figura do autor do crime (autoridades da república).

O Inquérito é, em si, ilegal, um ato incompetente.

O episódio da censura judicial à Crusoé/Antagonista mostra o tamanho dos absurdos que podem decorrer deste vício.

Parênteses, a matéria reportava fato verídico e não criticava ninguém. A defesa de Marcelo Odebrecht informou em juízo que determinada expressão se referia ao Ministro. A matéria não acusou o ministro de qualquer crime, não deu sequer um adjetivo a ele ou a sua conduta, muito menos lhe imputou qualquer favorecimento à Odebrecht. A reportagem foi baseada em um documento público verdadeiro, misteriosamente desaparecido em seguida. Não há, evidentemente, que se falar em difamação ou calúnia do Ministro. É possível ler, ainda, neste link de outra publicação.

Uma mensagem de Whatsapp do presidente da Corte – que parte teria o direito/possibilidade de acessar um juiz assim, em tempo real? – iniciou uma ordem penal de retirada de conteúdo, sem oitiva prévia de quem quer que seja, com estipulação de multa diária – algo estranho no processo penal.

A ordem – pelo que consta, cumprida – destravou a revolta da imprensa e das mídias sociais, que multiplicaram o conteúdo imediatamente. Vendo a situação sair de controle, a Corte aumentou a repressão, com operações policiais de busca e apreensão e bloqueio das redes sociais de sujeitos que não foram sequer indiciados.

Neste momento, o ato originalmente apenas incompetente se tornou desastroso para a imagem da Instituição e se aproximou do abuso de autoridade. Na forma do art. 3º, b e j, o ato que viola a proteção do domicílio ou o direito ao exercício profissional – no caso, a liberdade de imprensa – configura o crime de responsabilidade.

Sem fundamento fático ou legal, um órgão de imprensa foi censurado monocraticamente e sem oitiva prévia, em um inquérito ilegal por autoridade incompetente, apenas pela menção a uma autoridade.

Dito tudo isto, me espanta e entristece o silêncio, até o momento, da Ordem dos Advogado do Brasil no seu poder/dever de “defender a Constituição, a ordem jurídica do Estado democrático de direito, os direitos humanos, a justiça social, e pugnar pela boa aplicação das leis, pela rápida administração da justiça e pelo aperfeiçoamento da cultura e das instituições jurídicas;” (art. 44, I do Estatuto da Ordem).

Caberiam muitas virgulas a este texto, certamente. Escrito, confesso, com tremenda tristeza, revolta e um temor. Temor justamente pela importância do Supremo, que em sua história cumpriu por diversas vezes o seu papel de limitar os demais poderes e isto não pode ser perdido. Agora, enquanto perde suas balizas, abre margens e energia para ser limitado, modificado, atacado.

E ninguém sabe onde isto pode parar.

Fica, então, um humilde apelo, aos demais ministros: façam valer seu dever legal de “Cumprir e fazer cumprir, com independência, serenidade e exatidão, as disposições legais e os atos de ofício”.

Fabio Monteiro Lima

Giovanna Pacheco Lomba Ghersel

Larsen Nunes Bezerra

Leonardo Nezzo Volpatti

Advogados da Lima, Nunes e Volpatti Advocacia e Consultoria

UPDATE: A Procuradora-Geral da República manifestou-se (aqui) pela ilegalidade das provas coletadas, inconstitucionalidade do inquérito e o seu arquivamento. Tudo o mais constante, isto deve ser obedecido, a ver.

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