Nós não queremos agir contra o governo federal. Agora nós não vamos ficar esperando o governo federal agir. Nós vamos fazer aquilo que cabe ao governo do estado, mas não vou pedir licença pra Presidente, pra Ministro, pra ninguém para proteger os paraenses.
Helder Barbalho, governador do Estado do Pará, 21/03/2020.
A pandemia do COVID-19 vem testando os limites do federalismo brasileiro, como evidencia a frase forte do governador paraense. A doutrina jurídica tradicional aponta que o nosso sistema é um federalismo centrípeto, focado na União, com reduzida importância legislativa e limitado raio de ação das unidades federativas.
A História do Brasil demonstra que os movimentos de fortalecimento dos estados, ou ainda das províncias, sempre foram objeto da truculência do Poder Central. As revoltas locais como a Cabanagem paraense, a Revolução Constitucionalista de 32 paulistana, Balaiada, Sabinada e Confederação do Equador no Nordeste evidenciam este traço da nossa (des)identidade, seja no Império, seja na República.
Tanto o Estado Novo de Vargas (1937[1]) como o Ato Institucional n. 05 (1968[2]) usurparam os poderes estaduais através dos Interventores Federais. Evitavam ou dissipavam forças políticas capazes de antagonizar os presidentes, centralizando o planejamento nacional e a execução política. A centralização territorial do poder é elemento intrínseco dos autoritários e passo elementar dos ditadores.
A Constituição de 1988 avançou na proteção dos Estados, invertendo a redação, para determinar que a União não intervirá (art. 34, VII), salvo sete hipóteses de grave descumprimento das obrigações constitucionais destas Unidades. Mas manteve a concentração de competências na União e o caráter complementar ou suplementar ao demais. Após 32 anos de carta magna, tivemos uma apenas intervenção, temporária, parcial e negociada/requerida pelo estado intervindo. Mares calmos que agora parecem tão distantes.
O que vemos hoje, por outro lado, beira a crise generalizada entre os Estados Federados e a União, decorrente de uma grave distinção da apreciação da realidade da epidemia.
Apesar de o Ministério da Saúde ter reconhecido a emergência em saúde pública[3] e a transmissão comunitária nacional[4], a determinação oficial do Governo Federal é apenas de isolamento de pacientes sintomáticos e seus familiares e distanciamento social dos idosos.
Paralelamente governos estaduais tem decretado, por exemplo, o fechamento do comércio e serviços não-essenciais e, até mesmo, o fechamento de meios de transporte intermunicipal e interestadual terrestre, marítimo e aéreo. Isto sob fortes críticas presidenciais, que desaguaram na edição da Medida Provisória 926/2020 e do Decreto 10.282/2020, anunciados como retirando poderes dos governos estaduais para estas medidas.
Para interpretar tecnicamente a validade constitucional destas medidas, para além de um debate ideológico, é preciso ter em mente a complexidade da tarefa.
No âmbito material, há um conflito aparente de direitos fundamentais como livre iniciativa, liberdade de locomoção, de reunião, de credo e direito social à saúde, entre outros, destrinchados a diante.
No âmbito formal, a discussão sobre a repartição federativa de competências legislativas e executivas, entre as privativas, comuns e concorrentes, além da divisão de poderes executivos e legislativos, a reserva legal e a extensão do poder de decreto. A discussão passa, ainda, pelo conceito constitucional de bens dos entes federados e autonomia dos poderes.
Vejamos então a Constitucionalidade de cada uma destas medidas. Dentre as medidas estaduais tomaremos como exemplos: i) Decreto 46.979/20, do Estado do Rio de Janeiro; ii) Decreto 40.538/20, do Governo do Distrito Federal; face a MP 926/20 e Decreto 10.282/20 da União. A análise se dará em tópicos pela natureza da medida, antecedida pela análise da repartição de competências em saúde pública.
- A repartição constitucional de poderes em saúde pública;
- Fechamento do comércio, serviços e indústrias reputadas não essenciais e de aglomerações em geral;
- Proibição de cultos e missas;
- Restrições ao transporte intermunicipal e interestadual;
- A limitação de medidas restritivas locais pela MP 926/20;
- Como estabelecer um lockdown no Brasil?
Sigamos à análise. Em cada tópico serão cruzados os parâmetros de análise descritos anteriormente, vale alertar que este material também está impregnado pelo calor e pelas limitações do momento.
[1] Constituição da República de 1937, art. 9º. Ver: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao37.htm
[2] AI-5, art. 3º. Ver: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/ait/ait-05-68.htm
[3] Portaria 188, de 03 de fevereiro de 2020. Acesse aqui: http://www.in.gov.br/en/web/dou/-/portaria-n-188-de-3-de-fevereiro-de-2020-241408388
[4] Portaria 454, de 20 de março de 2020. Acesse aqui: http://www.in.gov.br/en/web/dou/-/portaria-n-454-de-20-de-marco-de-2020-249091587