BEM DE FAMÍLIA – IMÓVEL DE ALTO PADRÃO
É o sonho de muitas pessoas ter o seu próprio imóvel, onde possa construir sua casa e criar sua família, possibilitando, assim, fixar raízes. Esse imóvel, não poderia ser penhorado para pagamento de qualquer tipo de dívida contraída pelos cônjuges ou pelos pais ou filhos que sejam seus proprietários e nele residam. Os princípios do código civil de 2002 e a Lei nº 8.009/90 criaram o instituto jurídico do “bem de família” que, em tese, não é passível de alienação.
Mas, e se esse imóvel tiver um alto valor de mercado, e o proprietário usou desse bem para realizar negócios, sabendo dessa proteção, é possível afastar a impenhorabilidade sobre esse bem de família? Esse é o tema que foi enfrentado pelo Superior Tribunal de Justiça e ora comentaremos.
Primeiramente, como definir se um imóvel é de alto padrão? A algum tempo o preço deixou de ser, exclusivamente, o que define um imóvel desse nível. Outros fatores contribuem para dar esse status de luxo a um empreendimento. Ao contrário do que pode parecer, a metragem também não é um parâmetro fundamental.
Existem inúmeros apartamentos de alto padrão que estão construídos em lotes menores, principalmente em bairros muito valorizados. São regalias e diferenciais que definem um imóvel como sendo de alto padrão, como: a localização, a área de lazer, os serviços, o acabamento, a arquitetura de grife, a automação.
O Superior Tribunal de Justiça já se manifestou reiteradas vezes no sentido de que “os imóveis residenciais de alto padrão ou de luxo não estão excluídos, em razão do seu valor econômico, da proteção conferida pela Lei nº 8.009/90 aos bens de família, que assegura proteção independentemente do valor do imóvel. Porém, mitigou essa regra admitindo “a penhora de parte do imóvel, caracterizado como bem de família, quando for possível sem sua descaracterização. Isso seria, basicamente, desmembrar o imóvel para alienação de áreas contíguas, como piscina, churrasqueira, academia…
BEM DE FAMÍLIA. ELEVADO VALOR. IMPENHORABILIDADE.
A Turma, entre outras questões, reiterou que é possível a penhora de parte ideal do imóvel caracterizado como bem de família quando for possível o desmembramento sem que, com isso, ele se descaracterize. Contudo, para que seja reconhecida a impenhorabilidade do bem de família, de acordo com o art. 1º da Lei n. 8.009/1990, basta que o imóvel sirva de residência para a família do devedor, sendo irrelevante o valor do bem. O referido artigo não particulariza a classe, se luxuoso ou não, ou mesmo seu valor. As exceções à regra de impenhorabilidade dispostas no art. 3º da referida lei não trazem nenhuma indicação no que se refere ao valor do imóvel. Logo, é irrelevante, para efeito de impenhorabilidade, que o imóvel seja considerado luxuoso ou de alto padrão. Assim, a Turma conheceu em parte do recurso e, nessa extensão, deu-lhe provimento. Precedentes citados: REsp 326.171-GO, DJ 22/10/2001; REsp 139.010-SP, DJ 20/5/2002, e REsp 715.259-SP, DJe 9/9/2010. REsp 1.178.469-SP, Rel. Min. Massami Uyeda, julgado em 18/11/2010.
Ainda, o art. 3º, II da Lei nº 8.009/90 defende que “A impenhorabilidade é oponível em qualquer processo de execução civil, fiscal, previdenciária, trabalhista ou de outra natureza, salvo se movido: … II – pelo titular do crédito decorrente do financiamento destinado à construção ou à aquisição do imóvel, no limite dos créditos e acréscimos constituídos em função do respectivo contrato”. Ou seja, o referido dispositivo legal excepciona a regra de impenhorabilidade do bem de família, quando a dívida executada for oriunda de financiamento destinado à construção ou aquisição do imóvel. A ideia geral é garantir a habitabilidade do bem de família, porém, retirando os bens excedentes “ornamentais” para essa finalidade.
Entretanto, há interpretação com o intuito de evitar que o devedor se escude na impenhorabilidade do bem de família para obstar a cobrança de dívida contraída para aquisição ou reforma do próprio imóvel, ou seja, de débito derivado de negócio jurídico envolvendo o próprio bem. Assim entendem:
DIREITO CIVIL. BEM DE FAMÍLIA. EXISTÊNCIA DE OUTROS IMÓVEIS RESIDENCIAIS GRAVADOS COM CLÁUSULA DE IMPENHORABILIDADE. INAPLICABILIDADE DA LEI Nº 8.009/90.
- O propósito da Lei nº 8.009/90 é a defesa da célula familiar. O escopo da norma não é proteger o devedor, mas sim o bem estar da família, cuja estrutura, por coincidência, pode estar organizada em torno de bens pertencentes ao devedor. Nessa hipótese, sopesadas a satisfação do credor e a preservação da família, o fiel da balança pende para o bem estar desta última.
- Contudo, os excessos devem ser coibidos, justamente para não levar o instituto ao descrédito. Assim, a legitimidade da escolha do bem destinado à proteção da Lei nº 8.009/90, feita com preferência pela família, deve ser confrontada com o restante do patrimônio existente, sobretudo quando este, de um lado se mostra incapaz de satisfazer eventual dívida do devedor, mas de outro atende perfeitamente às necessidades de manutenção e sobrevivência do organismo familiar.
- Nesse contexto, fere de morte qualquer senso de justiça e equidade, além de distorcer por completo os benefícios vislumbrados pela Lei nº 8.009/90, a pretensão do devedor que a despeito de já possuir dois imóveis residenciais gravados com cláusula de inalienabilidade, impenhorabilidade e incomunicabilidade, optar por não morar em nenhum deles, adquirindo um outro bem, sem sequer registrá-lo em seu nome, onde reside com sua família e querer que também este seja alcançado pela impenhorabilidade. Recurso especial não conhecido. (REsp 831.811/SP, 3ª Turma, Rel. Min. Ari Pargendler, DJe de 05.08.2008)
Em um caso analisado pelo STJ (Resp nº 1.440.786-SP), em que a devedora claramente se aproveitou da proteção conferida pela Lei nº 8.009/90 para compromissar a venda do próprio bem onde residia com a família, sabedora de que o negócio poderia ser desfeito e na predisposição de reter indevidamente o sinal adiantado pelo comprador, alegou que o imóvel não poderia ser penhorado, por ser bem de família. Nesse caso, o STJ, não teve dúvida de que a proteção legal foi desvirtuada, propiciando o enriquecimento ilícito do proprietário do imóvel em detrimento de terceiro de boa-fé.
O entendimento da Corte Superior em relação à exceção da regra do art. 3º, II, da Lei nº 8.009/90, foi o de que “também alcança os casos em que o proprietário firma contrato de promessa de compra e venda do imóvel assim qualificado e, após receber parte do preço ajustado, se recusa a adimplir com as obrigações avençadas ou a restituir o numerário recebido, e não possui outro bem passível de assegurar o juízo da execução”. Veja-se:
PROCESSO CIVIL E CIVIL. BEM DE FAMÍLIA. CARACTERIZAÇÃO. VALOR DO IMÓVEL. IRRELEVÂNCIA. PENHORABILIDADE. DÍVIDA ORIUNDA DE NEGÓCIO ENVOLVENDO O PRÓPRIO IMÓVEL. CABIMENTO. EXEGESE SISTEMÁTICA DA LEI Nº 8.009/90. DISPOSITIVOS LEGAIS ANALISADOS: ARTS. 1º E 3º, II, DA LEI Nº 8.009/90. 1. Agravo de instrumento interposto em 12.03.2012. Recurso especial concluso ao gabinete da Relatora em 12.03.2014. 2. Recurso especial em que se discute se: (i) é possível afastar a impenhorabilidade sobre bem de família de elevado valor, de cuja alienação judicial resulte saldo suficiente para aquisição de novo imóvel pela executada; e se (ii) na execução de dívida oriunda de sinal não devolvido em compromisso de compra e venda desfeito, o próprio imóvel objeto do negócio pode ser beneficiado pela impenhorabilidade da Lei nº 8.009/90. 3. Os imóveis residenciais de alto padrão ou de luxo não estão excluídos, em razão do seu valor econômico, da proteção conferida aos bens de família pela Lei nº 8.009/90. Precedentes. 4. Da exegese sistemática da Lei nº 8.009/90 desponta nítida preocupação do legislador de impedir a deturpação do benefício legal, vindo a ser utilizado como artifício para viabilizar a aquisição, melhoramento, uso, gozo e/ou disposição do bem de família sem nenhuma contrapartida, propiciando o enriquecimento ilícito do proprietário do imóvel em detrimento de terceiros de boa-fé. 5. A regra do art. 3º, II, da Lei nº 8.009/90, se estende também aos casos em que o proprietário firma contrato de promessa de compra e venda do imóvel e, após receber parte do preço ajustado, se recusa a adimplir com as obrigações avençadas ou a restituir o numerário recebido, e não possui outro bem passível de assegurar o juízo da execução. 6. Recurso especial provido. (RECURSO ESPECIAL Nº 1.440.786 – SP, Rel. Min. NANCY ANDRIGHI, 3ª Turma, DJe: 27/06/2014)
Embora muitas pessoas sustentem a impenhorabilidade dos imóveis de alto valor considerados “bem de família” conforme o predisposto na Lei nº 8.009/90, foi apresentado no projeto de Lei n° 4.497/04, da Câmara dos Deputados, a tentativa de inserir parágrafo único ao art. 650 do CPC de 1973 (art. 834 do CPC de 2015), possibilitando a penhora de “imóvel considerado bem de família, se de valor superior a 1000 (mil) salários mínimos, caso em que, apurado o valor em dinheiro, a quantia até aquele limite será entregue ao executado, sob cláusula de impenhorabilidade”. Essa proposta foi vetada sob o argumento de que implicaria quebra do dogma da impenhorabilidade absoluta do bem de família, enfraquecendo a tradição surgida com a Lei nº 8.009/90, que assegura proteção independentemente do valor do imóvel.
A Teoria do Estatuto Jurídico do Patrimônio Mínimo, desenvolvida pelo Ministro do STF Dr. Luiz Edson Fachin, amparada na dignidade da pessoa humana, sustenta que, em perspectiva constitucional, as normas civis devem sempre resguardar um mínimo de patrimônio, para que cada indivíduo tenha vida digna. É possível verificar a proteção ao patrimônio mínimo na impenhorabilidade do bem de família e, também, naquelas elencadas no artigo 833 do novo Código de Processo Civil.
Ocorre que, o entendimento do STJ é certeiro no intuito de compatibilizar o princípio da dignidade de pessoa humana e o direito dos credores no que diz respeito à possibilidade de se penhorar o bem de família.
Fica pacificado, portanto, que nos casos em que o proprietário firma contrato de promessa de compra e venda do imóvel e, após receber parte do preço ajustado, se recusa a adimplir com as obrigações avençadas ou a restituir o numerário recebido, haverá a autorização da penhora do imóvel familiar.
E em casos que o bem imóvel é considerado de alto padrão, ou seja, um imóvel de valor elevado, deve-se ater que, se parte do valor penhorado for suficiente para o adimplemento da obrigação de pagar e ainda restar uma quantia para se devedor adquirir outro imóvel para a ocupação pela família do devedor, a penhora poderá também ser realizada.
Por fim, com bem vimos, a impenhorabilidade do bem de família já não é mais considerada uma regra absoluta no direito civil brasileiro, a excepcionalidade da aplicação dessa regra ainda enfrentará uma aplicação subjetiva do juízo. O que se recomenda, às partes do processo, é que se faça uma ampla demonstração probatória de que a medida constritiva afetará diretamente o princípio da dignidade da pessoa humana, no caso do devedor, ou o princípio da utilidade, no caso do credor.
Leonardo Nezzo Volpatti – Sócio Fundador do escritório Lima, Nunes e Volpatti – Advocacia e Consultoria
Flávio Luiz Lopes Guimarães Vidal Macêdo – associado do escritório Lima, Nunes e Volpatti – Advocacia e Consultoria.
Giovanna Ghersel – associada do escritório Lima, Nunes e Volpatti – Advocacia e Consultoria.