A deputada federal Carla Zambelli (PSL/SP), mais conhecida por sua tentativa frustrada de impedir a saída do ex-ministro Moro do governo, protocolou minuta de proposta de emenda à Constituição (PEC) que permitiria a redução da remuneração de servidores públicos durante a pandemia.
Minuta porque a PEC tem como requisito de apresentação contar com 171 assinaturas de deputados federais ou de 24 senadores, o que ainda não ocorreu. A ideia legislativa vem no contexto da troca de falas do Ministro da Economia, Paulo Guedes, e do presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia (DEM/RJ), sobre eventual renovação do auxílio emergencial (cuja última parcela será paga em julho) e a fonte deste custeio.
Já tratamos em outro artigo sobre a ineficácia e os prejuízos à sociedade da redução salarial com redução de jornada. Em suma, a redução da jornada dos servidores implicaria na redução da oferta/prestação de serviços públicos quando o povo brasileiro mais necessita e para que economia alcançasse o valor estimado, seria necessário reduzir a carga de trabalho de todos os servidores em 64%, absolutamente inexequível.
Hoje, porém, vamos falar apenas da inconstitucionalidade da Proposta desta Deputada.
A sugestão acrescenta apenas um artigo ao Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT) para determinar a redução dos vencimentos e subsídios dos ocupantes de cargos eletivos, membros do poder judiciário e ministério público e servidores dos três poderes, sem redução de carga horária, em 25%, àqueles que recebam mais de R$ 15.000,00 (quinze mil reais).
Vejamos alguns dos motivos pelos quais esta sugestão não pode sequer tramitar.
A Constituição da República não é um texto qualquer, ela é a norma fundante de um estado, e tem como objetivos centrais a limitação do poder estatal, sua organização e consequente proteção dos direitos fundamentais. Para cumprir estes objetivos, a Constituição se resguarda de qualquer emenda que fira as clausulas pétreas, evitando que o constituinte derivado – na sanha de um momento político – perca de vista a razão de ser deste normativo.
Isto não é apenas um entendimento teórico, estando positivado – registrado – no art. 60, §4º, da Constituição que proíbe a deliberação de propostas contra a federação (i), o voto e a democracia (ii), a separação dos poderes (iii) e os direitos e garantias individuais (iv).
O salário, e a irredutibilidade do seu valor por hora, é um direito de todo trabalhador, público ou privado, conforme estabelecido no art. 7º, VI e X, CR. O salário – tenha o nome de vencimento, remuneração ou subsídio – é a contraprestação do trabalho que sustenta a dignidade do trabalhador e sua família. A redução dessa contraprestação, com a manutenção da jornada, equivale a obrigar o cidadão a trabalhar gratuitamente por parte do seu dia, uma violência sem precedente em um estado democrático de direito.
É um desrespeito, ainda, ao direito de propriedade do servidor (art. 5º, XXII, CR), um confisco do seu salário sem indenização posterior. Ainda que estejamos em estado de emergência nacional, uma crise sem precedentes, a Constituição traz os procedimentos que podem ser realizados, como o empréstimo compulsório (a ser devolvido com correção e juros), a requisição administrativa e a criação de impostos como o Imposto sobre Grandes Fortunas.
Neste sentido, o Supremo Tribunal Federal reafirmou a inconstitucionalidade de dispositivo da Lei de Responsabilidade Fiscal que permitia redução de remuneração com redução de jornada em caso de excesso ao limite de despesas com pessoal que estabelece.
A crise é grave, milhões de brasileiros perderam ou tiveram sua renda reduzida e são tentados a querer uma revanche, igualdade no prejuízo, impondo perdas a quem ainda não foi diretamente atingido. A redução da remuneração traria uma economia apenas para efeito simbólico. Isto apenas traz mais divisão, ressentimento e aprofunda a recessão econômica, com a redução da circulação de recursos.
A crise, porém, será superada pelo fortalecimento das redes sociais de amparo, pelo investimento em saúde, ciência e tecnologia para enfrentar a epidemia e o investimento público na retomada econômica. Tudo isto demanda servidores públicos. A Constituição deve refletir o senso de justiça de uma nação e a Justiça não tem lugar para revanchismos.
Esta minuta de proposta, portanto, fere os direitos fundamentais dos servidores públicos de todo o país, gera divisionismo e enfraquece a sociedade brasileira no seu momento mais trágico, portanto, sua tramitação deve ser impedida, seja pela Presidência da Câmara, seja pelo Supremo Tribunal Federal, se vier a ter as assinaturas necessárias para ser apresentada.
Fabio Monteiro Lima é advogado, especialista em direito público, com foco na defesa de entidades do serviço público, e sócio de Lima e Volpatti Advogados Associados.