A cada crise fiscal, medidas para redução das despesas com pessoal no serviço público são propostas. O argumento gira em torno de frases feitas como desinchar a máquina, mais Brasil, menos Brasília e coisa o que o valha. Normalmente alegam se basear na participação percentual da folha de pagamentos dentro do orçamento público.
A comparação normalmente se dá entre os gastos com pessoal (de todas as áreas), com gastos com saúde e educação (não incluídos os seus servidores). Esta é a primeira falsa comparação, pois não existe serviço público sem despesas com pessoal. E para boa parte dos serviços, vale muito mais investir em contratar profissionais qualificados e acima da média de mercado, do que em bens e insumos.
Ao lado desta falácia, a calamidade incomparável do Corona vírus, trouxe um novo argumento enganador. A economia brasileira está em frangalhos, o desespero é crescente entre os trabalhadores. As linhas de crédito prometidas não alcançaram os principais empregadores, as micro e pequenas empresas – talvez propositalmente, como indica a fatídica reunião ministerial. A falta de compasso entre as medidas de amparo socioeconômico com as de distanciamento social (e redução da atividade econômica) fará com que cheguemos ao terceiro, e último, mês de pagamento do auxílio-emergencial com a disseminação viral em plena ascensão.
O placar do emprego do governo federal, indica que mais de 10 milhões de trabalhadores com carteira assinada tiveram redução ou suspensão do contrato de trabalho. A complementação paga pelo governo é limitada ao valor do seguro-desemprego (perto de R$ 1.800,00), deixando a descoberto qualquer redução acima disto.
Serão necessários mais investimentos públicos para a manutenção mínima da dignidade dos trabalhadores e trabalhadoras diante de uma crise sem horizonte de saída.
É natural, portanto, que surja um sentimento de desigualdade. Por que eu sou prejudicado e eles, os servidores, continuam recebendo normalmente? E este sentimento é explorado por políticos que querem tirar a sua atenção dos reais problemas.
Surge, novamente, a panaceia. Reduzir a remuneração do funcionalismo para bancar a continuidade do auxílio-emergencial.
Em primeiro lugar, simplesmente não teria este efeito. Cada trimestre de auxílio-emergencial custa aproximadamente 154 bilhões de reais, 308 bi até dezembro. O gasto total com pessoal na União, estados e municípios é de 928 bilhões por ano, restando 464 bi até o final deste ano. Ou seja, para mantermos mais seis meses de auxílio emergencial, seria necessário reduzir o salário de todos os servidores públicos, sem exceção, em 64%. O equivalente a manter todo o serviço público fechado de setembro ao final do ano. Quatro meses sem médicos, policiais, forças armadas, professores, nada.
Isto porque a redução da remuneração – para ser constitucional – tem de ser acompanhada da redução da jornada de trabalho, isto é, da redução da disponibilidade de serviços públicos à população. Exatamente como ocorre na iniciativa privada, as empresas que reduziram salários estão produzindo menos ou fechadas.
No meio de uma pandemia, enquanto os brasileiros se socorrem no Estado, tanto para medidas de saúde, econômicas, de gestão, infraestrutura, assistência social, pesquisa e tecnologia e tantas outras, há quem cogite reduzir esta disponibilidade. Seria o mesmo que entregar as chaves do país ao vírus. A outra hipótese é tratar os servidores como cidadãos de segunda classe, obrigados a trabalhar normalmente, mesmo com redução salarial, ferindo o direito de todo trabalhador ao salário.
O próprio auxílio emergencial não pode ser pago sem a dedicação dos servidores e empregados do Ministério da Cidadania, DATAPREV, SERPRO, Justiça Eleitoral, Receita Federal, Caixa Econômica. Os insumos de saúde que chegam em transportes militares e civis, com planejamento dos servidores dos Ministérios da Infraestrutura, Saúde, Relações Exteriores, servidores tributários e de comércio exterior.
O desenvolvimento de vacinas, tratamentos e respiradores pelo Instituto Butantã, FIOCRUZ, Evandro Chagas, com recursos da CAPES e do CNPq e toda a rede de instituições públicas de ensino e pesquisa. As ilegalidades sendo combatidas pelo controle externo e interno feito pelas Polícias Civis e Federal, Ministério Público, Defensoria Pública, Poder Judiciário, Advocacia Pública, Tribunais de Contas. Até mesmo o Poder Legislativo, controlando e aperfeiçoando os atos dos Executivos, continua a pleno funcionamento.
Tudo isto exige gente, selecionada, qualificada e dedicada, trabalhando mais do que o normal. Reduzir a quantidade de trabalho destes servidores não resolveria o problema financeiros e prejudicaria inúmeros direitos fundamentais.
A crise é grave e a população sofre, mas a redução dos salários e do trabalho dos servidores públicos é apenas um bode expiatório, um ato diversionista que prejudica a população que tanto precisa dos diversos serviços públicos, precisa do Estado nas suas diversas formas. É o momento de enfrentar o problema e repensar a tributação, o financiamento do estado, para que mantenhamos o funcionamento das instituições que permitem não apenas a nossa sobrevivência, mas a esperança em dias melhores.
Fabio Monteiro Lima é advogado, bacharel pela Universidade de Brasília (UnB), especialista em direito público e sócio da Lima e Volpatti Advogados Associados.